A mística como possibilidade de desalienação: uma acepção à luz das noções de objeto a e gozo feminino.
Gozo feminino, mística, crítica, cuidado de si e ética
Partindo do suposto de que a experiência mística aloca o sujeito numa posição subjetiva análoga à posição sexuada feminina, propor-nos-emos neste manuscrito a examinar tal experiência à luz das noções de objeto a e gozo feminino. Isso, de maneira a verificarmos se o evento místico, concebido na égide dessa modalidade de gozo, poderia depor a favor de um modo de subjetivação que, ocasionalmente, conflui para a desalienação no contexto da relação como Grande Outro personificado institucionalmente na religião formal; bem como favorecer a se pensar uma ético-política relativa ao gozo que preconiza o cuidado de si como exercício de autonomia. Para tanto, procederemos a uma pesquisa teórica com referencial psicanalítico (Garcia-Roza, 1993; Couto, 2010; Iribarry, 2003) subsidiada pelas abordagens metodológicas da pesquisa em direção êmica (Ginzburg, 2021) e da história em trânsito (LaCapra, 2006). Assim, faremos uma incursão na noção de sujeito em Lacan, a fim de o depreender nas perspectivas do imaginário (o eu da imagem), do simbólico (o sujeito da linguagem, efeito do significante) e do real (o falasser, corpo vivo que fala e goza) pois que, não se pode falar de mística sem considerar em primeiro plano o sujeito que protagoniza tal experiência. Ulteriormente, explicitaremos o conceito de gozo feminino no que ele implica um modo de gozo a ser localizado mais além do campo da significação fálica e o associaremos à mística a partir da sutil, porém, identificável aproximação feita por Lacan entre esses dois domínios. Neste ponto, ocupar-nos-emos de alguns pormenores relativos à vida e à trajetória espiritual de Santa Tereza D’ávila. Em especial, analisaremos a linguagem pela qual ela procura dar expressão a sua experiência do sagrado, porquanto a mesma, à semelhança de lalíngua, parece tanger o sem sentido que caracteriza o real, cujo limite é o puro gozo do corpo (nesse caso, o puro gozo do corpo amparado por arranjos imaginários que conjecturam a figura de Deus como parceiro de gozo). Na sequência, faremos uma apreciação histórico-crítica do caso envolvendo a religiosa e mística dominicana Marie de lá Trinité, com o propósito de averiguarmos determinados aspectos clínicos envolvendo a sua vivência espiritual e, sobretudo, sublinharmos a especificidade de sua experiência do sagrado e o que dela, juntamente com o trabalho de análise realizado com Lacan, sucedeu a título de possibilidade para a sua reconstituição subjetiva e reenlaçamento social. Adiante, dialogaremos com Foucault e Lacan de forma a alvitrarmos se a mística, mais além de se constituir um fenômeno estético de caráter sobrenatural, poderia figurar um modo de vida potencialmente crítico, subversivo e libertador. Julgamos plausível tal empreito em virtude de que, ao nos reportarmos à trajetória das personagens místicas em questão, observamos que, ao que parece, sua vivência espiritual não concerne a mero deleite solipsista e egocêntrico que se esgota em si mesmo, mas se prolonga na existência, diz de certa ética e política relativa ao gozo que impacta o seu jeito se ser, estar e se relacionar consigo, com o semelhante, com a instituição religiosa e com o divino. Disso, procuraremos asseverar a perspectiva de que o gozo de Deus, subentendido no gozo “d’A mulher”, caracteriza-se um princípio de singularização. Por fim, com base na supradita linha de pensamento de que a experiência mística, no que situa o sujeito no campo do feminino, favorece-o a se conduzir por outra gramática de reconhecimento que não a do “entre iguais” (universal), submeteremos a exame a hipótese de que a mística, quiçá, trata-se de uma particular solução subjetiva que, eventualmente, pode concorrer para a desalienação do sujeito.